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TIA CIATA


 
Hilária Batista de Almeida, Tia Ciata, nascida livre em 23 de abril de 1854, em Salvador, foi juntamente com outras tias baianas, a principal responsável pela desenvolvimento e consolidação do Samba no Brasil. Foi no quintal da sua casa a fonte de inspiração do primeiro Samba gravado no Brasil, em 1916 - "Pelo Telefone” de Donga e Mauro de Almeida.
Baiana, cozinheira, Mãe de Santo e animadora cultural, chegou ao Rio de Janeiro, aos 22 anos e morou na Rua Visconde de Itaúna (próxima à Praça Onze), na época local conhecido como Pequena África, por conta da forte presença de negros baianos no local. Por ser uma mulher dinâmica e empreendedora, Ciata logo se destacou entre as baianas introdutoras do Samba no Rio de Janeiro, promovendo sessões de Samba em sua casa, enquanto tirava seu sustento da cozinha típica baiana, vendendo quitutes em seu tabuleiro. Mãe de Santo afamada, realizava rituais de culto aos orixás africanos e recebia em sua casa grande número de políticos, boêmios, músicos e batuqueiros para saborear pratos típicos, principalmente a moqueca.





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O primeiro disco brasileiro foi gravado em 1902, pelo cantor Manuel Pedro dos Santos, mais conhecido como Bahiano (1870-1944), natural de Santo Amaro da Purificação
Bahiano, entrou para história da música brasileira ao gravar o Lundu “Isto é Bom”, de autoria do compositor Xisto da Bahia (1841-1894), por decorrência, o primeiro compositor a ter uma música gravada no Brasil.
O disco foi lançado comercialmente pela Casa Edison do Rio de Janeiro, do empresário de origem Tcheca Fred Figner (1866-1946), que depois viria a criar a famosa gravadora Odeon.
Os discos, na época, eram feitos de ceras de carnaúba e reproduzidos em gramofones que funcionavam a corda. Para gravar era utilizada apenas a energia mecânica, os cantores deviam ter vozes potentes e cantavam praticamente gritando para terem suas vozes captadas pelas máquinas de gravação.
Apesar de ser atribuída a Bahiano a honra de ser o primeiro a gravar um disco no Brasil – o N° de série do seu disco Zon-O-Phone era 10.001 - no ano de 1902 também foram lançados, simultaneamente, várias chapas para gramofones - um total de 228 - interpretados, na maioria das vezes, além de Bahiano, por Cadete, outro famoso cantor da época, e pela Banda de música do Corpo de Bombeiros. Existe ainda, no mesmo período, registro de 14 discursos de personalidades, estes lidos por locutores da casa.



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Dentro da Vila Telebrasília, um movimento social e musical ganha força e ensina música. Cidadania de Dudu Oliveira e Thais Tosi.
Por Irlam Rocha Lima



O Departamento de Música da Universidade de Brasília, a Escola de Música e a Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello são as principais referências na formação de instrumentistas na capital federal. As três, ao longo do tempo, têm enviado ao mercado de trabalho músicos que, em muitos casos, passam, em seguida, a brilhar no país e no exterior.

Mas, há cinco anos, uma outra instituição brasiliense dá importante contribuição nessa área, ao facilitar o acesso à cultura com forte viés solidário. É o projeto Waldir Azevedo, que, gratuitamente, promove a inserção social de pessoas moradora da Vila Telebrasília.

À frente dessa fábrica de novos talentos está Dudu Oliveira, obstinado em sua missão de aproximar jovens carentes à arte, afastando-os do ócio nocivo e, em alguns casos, de situações de risco, como o envolvimento com drogas. O ponto de partida foi a criação da Orquestra de Cavaquinhos Waldir Azevedo.

Mineiro criado em Cabo Frio (RJ), Dudu se apaixonou pela música ao participar do projeto social Apanhei-te Cavaquinho, naquela cidade litorânea. Lá, se aprofundou na obra de Waldir Azevedo. “Inicialmente, fui aluno no projeto e mais tarde professor e coordenador. Em Cabo Frio, conheci Thais Tosi, brasiliense que morava em Búzios, com quem me casei em 2007”, lembra o músico.

Três anos depois, o casal veio para Brasília. Dudu passou a tocar em casas noturnas e a dar aulas de musicalização infantil no Plano Piloto. Mas ele tinha o plano de criar algo que pudesse dar contribuição maior à sociedade, e aí surgiu a ideia de criar a Orquestra de Cavaquinhos Waldir Azevedo.





 


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Por Irlam Rocha Lima

    
Um pagode no fundo da casa de João Eduardo Neto e Ivone Araújo, na quadra 3 do Gavião (hoje Cruzeiro Velho), em outubro de 1960, foi o marco inicial da Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro. O casal, natural do Rio de Janeiro e ligado à Mangueira — ele funcionário do Ministério da Fazenda — chegara meses antes à nova capital. “Fomos os primeiros moradores do Gavião e, naquela noite, nos reunimos com Seu Tudinho, Mangueira, Camilo Mendes e outros amigos, todos cariocas e funcionários públicos transferidos para Brasília. Durante o pagode, surgiu a ideia da criação de um bloco carnavalesco, que evoluiu para a fundação de uma escola de samba”, recorda-se Dona Ivone. Aos 84 anos, ela é uma das raras remanescentes daquele encontro.

A Unidos do Cruzeiro, que se popularizou como Aruc e teve Dona Ivone entre seus fundadores, desfilou pela primeira vez no carnaval de 1961, tendo como enredo uma homenagem ao presidente Juscelino Kubitschek. De lá para cá, a azul e branco, que tem a Portela como madrinha, tornou-se a maior detentora de títulos e transformou-se em referência de samba no Distrito Federal. São memoráveis as passagens pela quadra da Aruc de mestres do samba como Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, João Nogueira, Jamelão, Zeca Pagodinho e da Velha Guarda da Portela.

Pioneira


Outra escola pioneira e que viria a ser a grande rival da Aruc, a Acadêmicos da Asa Norte, surgiu oito anos depois — inicialmente como bloco. “Foi a partir de reuniões no apartamento do seu Anadir Rodrigues, na 405 Norte. Ele viria a ser o primeiro presidente. Com tudo decidido, passamos a promover ensaios no Clube de Vizinhança, na 605”, lembra Nilton Farias da Silva, 87 anos, aposentado pelo Ministério das Comunicações. Em 1974, quando passou a ser uma escola de samba, a Acadêmicos da Asa Norte, atual tricampeã, recebeu a visita de representantes das agremiações cariocas Mangueira, Portela, Império Serrano e Salgueiro. “A Salgueiro passou a nos apadrinhar”, lembra.

Compositores cariocas como Manoel Brigadeiro, Julinho do Samba (já falecidos) e Daniel Jr. contribuíram para difundir o samba na cidade. Mas quem mais fez para que isso ocorresse foi Carlos Elias. Ex-integrante da Portela, para a qual compôs o samba-enredo Rugendas – Viagem pitoresca através do Brasil, que levou a escola ao título de campeã em 1962.

O veterano sambista de 82 anos chegou a Brasília em 1975. Três anos depois, já totalmente enturmado na cena musical brasiliense, Carlos Elias criou o Clube do Samba, que funcionou com sucesso no extinto Teatro Galpão. “O Clube ficou ali até 1981. Lá recebemos convidados ilustres como Paulinho da Viola, Beth Carvalho e Zé Keti”, conta. Recentemente o clube voltou a funcionar no bar e restaurante Santa Fé, no Jardim Botânico.

Respeito e  admiração


Músicos, cantores e compositores da nova geração do samba em Brasília e pessoas ligadas a outras manifestações artísticas veem Carlos Elias e o têm como mestre. Em 2014, na comemoração dos 80 anos do mestre, Leandro Borges da Silveira lançou o documentário intitulado Estou de bem com a vida – Uma celebração a Carlos Elias.

Vocalista e pandeirista do Adora Roda, Breno Alves formou a banda que acompanhou Carlos Elias em shows no Cordão do Bola Preta e no Sesc de Madureira, no Rio de Janeiro, em 2013. “Pude perceber que o Seu Carlos é muito respeitado no meio do samba do Rio. No show do Bola Preta, produzido por Carlos Monte (pai de Marisa Monte), Monarco e Noca da Portela deram canja”, destaca Breno.

No ano passado, Breno foi o vencedor do festival Novos Bambas do Velho Samba, no bar Carioca da Gema, na Lapa. “Como prêmio, fiz shows na casa durante um mês. Depois passei a me apresentar lá de 15 em 15 dias. Breno e seus companheiros do Adora Roda produziram, em setembro de 2015, o projeto Flores em vida, que trouxe ao Centro Cultural Banco do Brasil, Monarco, Nelson Sargento e Dona Ivone Lara.

Sambista candanga, com passagem pela Europa e África, Renata Jambeiro tem um trabalho em que enfatiza a cultura afro-brasileira, registrado nos CDs Jambeiro (2007), Sambaluayê (2009) e Fogaréu (2015). Casada com o violinista francês Nicolass Krassik, a cantora está radicado no Rio há quatro anos.

“Tenho trabalhado bastante, fazendo shows, participando de rodas de samba e fazendo pesquisa. Em 2014, me juntei a Nilze Carvalho, Janaína Moreno e Dayse do Banjo no bloco Mulheres do Zeca, criado por Dorina, que tem Tia Surica, da Portela, como madrinha”, festeja.

Quem radicou-se há mais tempo no Rio foi Makley Matos, capixaba que inicialmente brilhou em Brasília no grupo Samba & Choro, criado por saudoso Evandro Barcelos, importante referência para vários músicos e criador do grupo Samba & Choro. Vencedor da primeira edição do festival Novos Bambas do Velho Samba, Makley tem cantado em casas noturnas da Lapa, da Gamboa e no Samba do Trabalhador, do Clube Renascença, em Vila Isabel.

Mas ele obteve destaque maior ao integrar o elenco de É com esse que eu vou, musical escrito por Sérgio Cabral e Rosa Maria Araújo que estreou em 2009, no Teatro Oi Casa Grande (Rio) e excursionou pelo país– em Brasília foi visto no Teatro da Caixa. “Esse espetáculo fez muito sucesso e alavancou minha carreira”, afirma. “Em breve, lanço o Liberdade é saravá, meu primeiro CD solo”.

O Rio recebeu também músicos como os violonistas Rogério Caetano, requisitadíssimo por estrelas fulgurantes do samba como Zeca Pagodinho e Beth Carvalho; e Rafael dos Anjos (ex-Choro Livre), diretor musical da banda que acompanha Arlindo Cruz. “Tenho trabalhado também com outros artistas, inclusive Hamilton de Holanda, na gafieira Baile do Almeidinha”, destaca Rafael dos Anjos.


 




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Minorias unidas


Por Beatriz Coelho Silva



Nas quatro primeiras décadas do século XX, negros vindos da Bahia e da região cafeeira do Estado do Rio e judeus do Leste Europeu dividiam ruas, escolas e até casas no bairro Praça Onze, que abrangia dezenas de ruas do Centro do Rio de Janeiro. Os dois grupos tinham muito em comum: um passado recente traumático – escravidão para os negros e perseguições religiosas para os judeus – e religiões malvistas pela sociedade.



Sem profissões definidas, eles tentaram se adaptar à nova terra trabalhando nas ruas, vendendo mercadorias, produzindo boa música, boa comida, e exibindo um humor refinado. Para negros e judeus, a Praça Onze era ponto de referência, mas os dois grupos a ocupavam de maneiras distintas. Enquanto os negros mantinham instituições informais, sem sedes ou estatutos, os judeus criavam jornais, clubes, sinagogas e escolas. Sua vocação para a política formal e, muitas vezes, de oposição, era explícita, a se julgar pela quantidade de membros da comunidade filiados a correntes políticas brasileiras ou europeias. Os negros, embora organizados na festa, na religião e na solidariedade, não quiseram ou não puderam integrar partidos ou criá-los.



Em 1942, o bairro foi demolido para que a Avenida Presidente Vargas pudesse passar, mas entrou para a mitologia carioca como o berço das manifestações mais brasileiras: o samba, o choro, o carnaval. Muito se fala da Praça Onze em sambas clássicos e textos acadêmicos. Negros e judeus contam sua história, mas uns não falam dos outros quando reconstituem esse passado. “Como se um grupo fosse invisível para o outro”, comenta o escritor Sérgio Cabral. No entanto, há fotografias de judeus nos blocos de carnaval e relatos de negros fluentes em iídiche.



Pelo menos um personagem passou de uma cultura a outra e ganhou o mundo. O líder judaico e memorialista Samuel Malamud (1908-2000), em Recordando a Praça Onze, e o compositor e escritor Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Negra, citam o Dr. Jacarandá, como era conhecido Manuel Vicente Alves Palmeira, negro alagoano que chegou ao Rio com 21 anos, em 1904. Tornou-se rábula, e circulava pela Praça Onze advogando para aquela população desassistida pelo poder público. Ele é tido como o inspirador do Zé Carioca, o brasileiro típico criado pelo judeu norte-americano Walt Disney (1901-1966) para o filme “Alô, Amigos!”. Não há registros de uma ida do animador à Praça Onze, mas o produtor hollywoodiano Hal Roach (1892-1992) – dos filmes de O Gordo e o Magro – esteve lá nos anos 1930 e saiu prometendo colocar aquele cenário em suas produções cinematográficas.



A ideia de Roach reflete o humor de judeus e de negros. Autorreferentes, implacáveis – mas não grosseiros – e antiautoritários, eles são capazes de zombar de todos, “inclusive de Deus”, como afirma a jornalista e historiadora Helena Salém. Embora houvesse a barreira da língua (o iídiche com sotaques diversos e o português influenciado pelos dialetos africanos), é improvável que não fizessem piadas, e que a segunda geração dos dois grupos, educada em português, não trocasse zombarias.



Mas é patente a falta de um marco judeu na atual Praça Onze, onde, além do Sambódromo, a cultura negra é lembrada pelo monumento a Zumbi dos Palmares e pela Escola Municipal Tia Ciata, em homenagem à mãe de santo que abrigava as primeiras rodas de samba da cidade. Talvez por terem permanecido na região, os afro-descendentes consideram o bairro como um local de seu passado, reivindicação incentivada pelo poder público. Se recordamos o passado em função do que vivemos no presente, que fatos de hoje empurram o relacionamento entre judeus e negros para o esquecimento? E que sentimentos e acontecimentos levaram os dois grupos a não falarem um sobre o outro durante quase 70 anos, desde a demolição da Praça Onze?



Além da construção da Av. Presidente Vargas nos anos 1940, outra grande obra do século XX dificultou a localização do bairro e mudou radicalmente a sua paisagem: a construção da linha do metrô, nos anos 1980. Felizmente, o Rio de Janeiro é uma das cidades mais fotografadas do mundo, e sobraram imagens da antiga configuração da área. A praça, cujo nome homenageia a vitória brasileira na Batalha do Riachuelo, em 11 de junho de 1865, ficava à esquerda da entrada do Sambódromo e ia até o Canal do Mangue, que divide a Presidente Vargas em duas pistas. Em volta dela, as ruas tinham traçado regular, e as mais movimentadas, Senador Eusébio e Visconde de Itaúna, paralelas ao Canal do Mangue, desapareceram com o surgimento da avenida.



A região foi povoada por famílias burguesas que, no fim do século XIX, se mudaram para a orla da Baía de Guanabara e alugaram seus palacetes para os imigrantes pobres que chegavam ao Rio em grande quantidade. Segundo o Censo de 1906, 200 mil pessoas moravam lá, amontoadas em cortiços e casebres, às vezes com oficinas no térreo. O “bota-abaixo” dos primeiros decênios do século XX, que expulsou as populações pobres do Centro do Rio, não atingiu o bairro, talvez porque os proprietários dos cortiços tenham se recusado a ficar sem a renda dos aluguéis, ou devido à resistência dos moradores, que já haviam feito do bairro o palco das festas populares, como o carnaval e o Natal.



Com muitos bares e restaurantes, a praça tinha uma vida boêmia intensa. E ainda hospedava a zona de meretrício, onde se apresentavam músicos já consagrados, como Sinhô (1888-1930), ou que se consagrariam depois, como Benedito Lacerda (1903-1958) e Luiz Gonzaga (1912-1989). Tanto nos clubes judeus como nas casas dos negros, havia festas em profusão. As cerimônias religiosas dos descendentes de africanos eram seguidas de batuques. Nas rodas de samba e de choro, gêneros que haviam acabado de nascer, os músicos cariocas – nativos, como Cartola (1908-1980), ou de adoção, como o mineiro Geraldo Pereira (1918-1955) – apresentavam novas composições. No carnaval, a cada noite, 40 mil pessoas se espremiam na praça, multidão comparável à que vai ao Sambódromo. Era lá que desfilavam, até os anos 1930, as primeiras escolas de samba, como a Deixa Falar, do Estácio, a Estação Primeira de Mangueira e a Portela.



Os judeus tinham cerca de cinco jornais e um número parecido de clubes. “Os imigrantes solteiros e os que estavam sem família ficavam na Praça Onze até altas horas. Após o fechamento do comércio, faziam suas refeições no bairro. Na Praça Onze e nas proximidades, várias pensões forneciam refeições judaicas”, conta Samuel Malamud. Artistas da classe média, como Noel Rosa (1910-1937), Braguinha (1907-2006) e até o bem-nascido Mário Reis (1907-1981) – advogado e um dos donos da Fábrica de Tecidos Bangu – costumavam dizer que a música que encantava seus públicos vinha da Praça Onze.




Apesar de importante, a praça não foi poupada na reforma urbana promovida nos anos 1940 pelo prefeito Henrique Dodsworth (1895-1975), que deu origem à Avenida Presidente Vargas, bulevar que vai da Igreja da Candelária à Praça da Bandeira. A ideia de rasgar a cidade com uma larga avenida ladeada de prédios altos é atribuída ao suíço Le Corbusier (1887-1965), mentor da arquitetura moderna brasileira. Foram derrubados os imóveis de dois e três pisos, característicos da Praça Onze, mas a avenida idealizada não vingou, e até hoje a Presidente Vargas tem vastas áreas desocupadas.




A historiadora e arquiteta Fânia Fridman também atribui a demolição à necessidade que o governo brasileiro, simpatizante das ideologias antissemitas dos anos 1930 e 1940, tinha de conter os judeus que lá se refugiaram e que combatiam o governo em seus jornais, suas associações e seus clubes, como forma de autodefesa. Levando em conta o que dizia Samuel Malamud, a manobra deu certo, pois a comunidade judaica estava “integrada ao meio ambiente do país” e não reinavam mais “a dinâmica e o fervor dos idos anos da Praça Onze”. Aparentemente, os judeus saíram de lá sem reclamar.



Os negros, não. Os protestos vieram antes, no carnaval de 1941, com a marcha “Praça Onze”, de Herivelto Martins (1912-1992) e Grande Otelo (1915-1993), que lamentava o fim do logradouro e fez enorme sucesso: “Vão acabar com a Praça Onze".



Não vai haver mais Escola de Samba...”. O tempo aumentou o sentimento pela perda do bairro. Um dos hits de 1965, ano do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, foi o “Rancho da Praça Onze”, de João Roberto Kelly e Chico Anysio. Nas décadas seguintes, a praça virou símbolo da resistência cultural dos negros, dita imortal no samba-enredo “Bumbumpaticundumprugurundum”, que deu a vitória no carnaval de 1982 ao Império Serrano.



Nos anos 1980, a sede administrativa da prefeitura foi para lá, e é chamada de Piranhão até pelas autoridades municipais – uma herança da picardia de outros tempos. Atualmente, a região abriga prédios residenciais e comerciais recentes, como a sede da Empresa Brasileira de Correios e o Teleporto. Há também áreas de entretenimento, como o Sambódromo e o Terreirão de Samba, que só são usadas na época do carnaval, para shows e por alguns raros circos, o que demonstra que a Praça Onze ainda não voltou a ser ocupada como nos tempos do Dr. Jacarandá.



Beatriz Coelho Silva é Jornalista e autora de Palácio das Laranjeiras (Topbooks, 2008) e Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).





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honra do samba


Nas mesas e nos copos, a cerveja já é presença confirmada das rodas de samba.


POR SOMOS TODOS CERVEJEIROS


conteúdo de responsabilidade do Empório da Cerveja



Para marcar a integração entre samba e cerveja,
membros de rodas famosas tocaram no esquenta
de abertura do Camarote da Boa, na Sapucaí.



O ritmo mais tradicional do Brasil completa 100 anos em 2016. E se existe uma maneira de brindar a esse aniversário, certamente é com cerveja. A parceria da dupla é antiga, virou paixão nacional: hoje, é raro encontrar uma roda de samba em que a bebida não esteja presente, nem que seja no cenário.


“A cervejinha está na cenografia o tempo inteiro. Nesse contexto das rodas, já faz parte da tradição você ter as cervejas e os petiscos na mesa. Se não tiver, está errado”, brinca Fabiano Salek, 40 anos, integrante da Sururu na Roda, uma das mais tradicionais rodas de samba do Rio de Janeiro.


Tomar cerveja para acompanhar o samba não é apenas um hábito. Faz parte de uma celebração da cultura brasileira, já que as rodas surgidas no Rio no início do século passado não se limitavam à coreografia ou à música:


“A roda de samba comporta muito mais coisas: comporta a maneira como você se veste, a maneira como você conversa com as outras pessoas, a maneira como você celebra o amor, a cidade, o território”, explica o historiador Luiz Antônio Simas.


Bebida gelada e música quente

A mistura de influências entre tradições de baianos que migraram para o Rio, batuques africanos e maxixe deu origem ao samba. Na cidade onde o ritmo nasceu existe outro fator que deixa ainda mais favorável a combinação com a bebida: o calor.



Linha do tempo com a história dos 100 anos do
Samba, no Camarote da Boa.


“Aqui, sem cerveja a roda não começa. Ainda mais no verão, quando é muito calor”, diz Yuri Bittar, 34, do Samba do Ouvidor, outra tradicionalíssima roda da Cidade Maravilhosa.


Eduardo Gallotti, 52 anos, voz e cavaquinho da Eduardo Gallotti e Roda, concorda com o amigo: “É uma parceria fundamental. Nesse calor, o negócio é bebida gelada e música quente. Aí a gente entra nesse dilema: se o samba parar, ele esfria. Mas se os músicos não pararem para tomar um gole, a cerveja esquenta”, brinca.


Celebrar o samba

As tradicionais rodas comemoram o centenário do ritmo em vários pontos do Rio. Mas quem foi à Marquês de Sapucaí no Carnaval também conheceu um pouco mais da história do samba. No camarote da BOA, que estará aberto até o desfile das campeãs, no próximo sábado, a homenagem foi para o centenário do ritmo mais brasileiro.


“Falar de samba significa falar de tradição, falar de verdade, falar de essência, respeito e falar de detalhe. Então esse camarote é composto esse ano de muitos detalhes. De detalhes de pessoas que fizeram essa história acontecer”, diz Maria Fernanda de Albuquerque, diretora de marketing de Antarctica.


Em uma das paredes do camarote, a Antarctica contou a história do samba, com destaque para os principais fatos que marcaram os 100 anos do ritmo. Durante o evento de abertura do espaço, no sábado antes do início dos desfiles, houve um esquenta com integrantes das principais rodas do Rio. Tudo acompanhado de perto pela dama de honra do samba: a cerveja.


Confira fatos da história do samba:

1916 - Donga e Mauro de Almeida compõem o lendário samba “Pelo telefone”, gravado no ano seguinte.

1925 - Primeiro concurso de sambas e marchinhas, no teatro São Pedro, no Rio de Janeiro.

1928 - Surge a primeira escola de samba do Brasil, a Deixar Falar, no Rio de Janeiro.

1929 - Surge a Estação Primeira de Mangueira.

1930 - Carmen Miranda é consagrada nacionalmente com a marchinha “Para você gostar de mim (Taí) ” de Joubert de Carvalho.

1931 - Noel Rosa lança “Com que roupa? ”, primeiro sucesso interpretado pelo poeta da Vila.






Rodas de samba são origem do samba urbano
no Rio de Janeiro.






1934 - Surge a escola de samba Portela.

1935 - A escola Vai Como Pode muda de nome e, como Portela, vence o carnaval.

1937 - É criada a Lavapés, primeira escola de samba de São Paulo.

1938 - Dorival Caymmi tem seu samba “O que é que a baiana tem? ”cantado por Carmen Miranda no filme Banana da terra.

1939 - Ary Barroso lança “Aquarela do Brasil”.

1942 - Ataulfo Alves e Mário Lago lançam o sucesso “Ai, que saudades da Amélia”.

1953 - Surge a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro.

1955 - O conjunto Demônios da Garoa lança “Saudosa maloca”, de Adoniran Barbosa.

1959 - Em seu primeiro desfile no grupo especial, a Mocidade Independente de Padre Miguel revoluciona ao criar a célebre “paradinha da bateria”.

1963 - É instituído o dia 2 de dezembro como Dia Nacional do Samba.

1974 - Adoniran Barbosa protagoniza comercial da Antarctica.






Primeiro andar do Camarote da Boa, na Sapucaí,
com decoração que remete a detalhes do samba.






1984 - O então governador do Rio, Leonel Brizola, entrega a Passarela do Samba, ou Sambódromo. Projeto de Oscar Niemayer.

1986 - Zeca Pagodinho lança seu primeiro LP, Zeca Pagodinho.

1991 - Desfile das Escolas de Samba de SP é realizado pela primeira vez no Sambódromo do Anhembi.

2005 – Morre o compositor, cantor, sambista e ritmista Bezerra da Silva.

2006 – O samba-de-roda do Recôncavo Baiano foi proclamado "Patrimônio da Humanidade" pela Unesco.

2008 – Morre o intérprete de samba enredo Jamelão.

2010 - Antarctica tornou-se patrocinadora oficial do Carnaval de Rua do Rio, parceria que se estende até hoje.

2013 - Antarctica lança o concurso Talentos do Samba, que celebra, fomenta e divulga a cultura do samba de raiz nas comunidades. E tem como principal objetivo deixar um legado para as comunidades cariocas, descobrindo e divulgando talentos da nova geração.






Reprodução da janela de Cartola.






2014 - Antarctica realiza o Morro em Festa, primeiro festival de samba com quatro festas simultâneas no Vidigal com objetivo de coroar a relação entre morro e asfalto.

2015 - De Donga a Diogo Nogueira, 100 anos de samba, com direção de Gustavo Gasparani, o musical ‘Sambra’ estreia no Vivo Rio para contar e cantar a história do gênero.

2015- Antarctica chega à Sapucaí com o Camarote da BOA e realiza o Batuque da BOA, uma união inédita de 10 das mais tradicionais rodas de samba cariocas, que se apresentaram no mesmo dia, em seus redutos originais, em um circuito cultural aberto ao público.

2015 - Lançamento da edição especial de garrafas da BOA em homenagem ao samba com trechos de canções clássicas estampados.

2016 – Comemoração do Centenário do SAMBA.


Integrantes das principais rodas de samba do Rio de Janeiro.










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Nomes como Carlos Elias, Cássia Portugal e Sandra Borges também são referências às novas gerações



Por Irlam Rocha Lima



A história do samba em Brasília começa antes mesmo da inauguração da nova capital, com o desfile de blocos, formados por policiais da GEB, na Cidade Livre. Logo depois, servidores públicos, que vieram para cá transferidos do Rio de Janeiro, fundaram as primeiras escolas de samba, entre elas, a Alvorada em Ritmo e a Brasil Moreno.



Pioneiras, elas foram antecessoras das duas agremiações que vieram se tornar as mais famosas, a Associação Recreativa Unidos dos Cruzeiro (Aruc) e a Acadêmicos da Asa Norte. As duas tiveram entre os seus integrantes compositores ancestrais, como Edinho da Magali, Miro Brasília, Manoel Brigadeiro e Julinho do Samba, e os cantores Nilton de Oliveira (o Sabino) e José Lourenço.



Na década de 1970, o ponto de encontro dos apreciadores do mais brasileiro dos gêneros musicais passou a ser o Casarão do Samba, que funcionou por quase uma década onde hoje existe o Museu de Arte de Brasília. Lá, José Lourenço era uma espécie de anfitrião de artistas que vinham fazer show na cidade — de Roberto Ribeiro a Alcione.



Em seguida, houve o surgimento de incontáveis casas noturnas que passaram a ter o samba como principal atração, entre elas a Camisa Listrada, cujo mérito maior foi apresentar aos brasilienses um certo Carlos Elias. Mas a veterana Aruc, fundada em 1962, é que se manteve como símbolo de resistência cultural.



Ao longo dos anos, além de tornar-se a campeoníssima do carnaval candango, a escola recebeu em sua sede, no Cruzeiro Velho, para shows memoráveis, os nomes mais representativos do samba: do mangueirense Cartola à Velha Guarda da Portela, do grande Paulinho da Viola à “madrinha” Beth Carvalho, passando por João Nogueira, Zeca Pagodinho, entre outros bambas.




Carlos Elias, que sempre defendeu as cores azul e branco da Aruc, transformou-se num ícone da música em Brasília. Ao lado dele, Daniel Jr., Dilson Marimba, Sérgio Magalhães, Cássia Portugal e Sandra Borges são alguns dos representantes da tradição do samba na capital, e são reverenciados por novos cantores e compositores, que os veem como referência e inspiração.



Referência para novos sambistas




Breno Alves, Amilcar Paré, Cris Pereira e Ana Reis são jovens sambistas que têm bebido na fonte de representantes da tradição do samba em Brasília. Eles veem como expressivo o legado de Carlos Elias, Daniel Jr. e Sérgio Magalhães,



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Conversando com
CANHOTO DA PARAÍBA


Publicado por Urariano Mota em 10/01/2008



Relato de uma conversa incrível com Canhoto da Paraíba, e do milagre que a sua arte faz, apesar do AVC.




Com os artistas fundamentais, com as pessoas mais velhas, conversar é mais escutar e ouvir. Canhoto da Paraíba preenche essas duas condições. Conversar com ele é mais escutá-lo. Mas com um câmbio de significado. Escutar Canhoto da Paraíba, hoje, é um exercício que vai além da audição, porque atinge todos os sentidos. Temos que usar a vista, o olfato, o tato, o gosto de estar com a sua pessoa, e, mais adiante, utilizar um sentido que não está entre os cinco que aprendemos desde a primeira escola. Temos que observá-lo como quem nada observa, para que ele não se recolha envergonhado de ser a pessoa que é.




No domingo em que o visito, Canhoto da Paraíba está com 81 anos, sentado em uma cadeira, como sempre está durante 16 horas, todos os dias. Depois de um Acidente Vascular Cerebral, ele fala com dificuldade e baixo. Abrevia palavras, corta sílabas. Por isso mais atento ainda devemos estar à sua pessoa. Em 17.6.2007, reencontro Canhoto três anos mais velho, três anos mais enfraquecido, na mesma cadeira em que o vi há três anos. Parece que ele não saiu do lugar desde a última vez. Vou a sua casa como portador de um regalo, como um mensageiro para a boa nova de uma caixa bonita com os CDs Vale dos Tambores, do compositor e intérprete Carlos Henrique Machado. Ele me recebe no terraço, mais uma vez.




Descubro que ele agora vê mal por somente uma das vistas. Mas que importa? Canhoto é um homem que tem mania de felicidade. Se há indivíduos que têm prazer no sofrimento, a de Canhoto é sorrir, procurar o sorriso, buscar a felicidade. Ele sofre, claro, ele percebe o sofrimento, é evidente, mas isso não o leva ao desespero, nunca, jamais. Por exemplo, nesse domingo, quando estou em sua casa, carrego comigo meia garrafa de uísque, para beber enquanto ouço os choros de Carlos Henrique Machado. Então eu peço à sua filha Vitória um copo com gelo. Que faz Canhoto? Pede um também, porque deseja me acompanhar na bebida. Eu fico muito feliz com isso, ter Canhoto comigo em uma bebida, a ouvir choros no bandolim... quanta esperança. Vitória, filha, secretária, enfermeira e companheira repõe a nossa alegria no quintal da realidade.




- Ele não pode beber, por causa do remédio. Ele toma Gardenal.




Então eu, o caridoso – e a caridade se confunde com a crueldade em mais de uma rima – levo o meu copo de uísque a seu nariz, para que ele, se não pode beber, pelo menos sinta o aroma do álcool com gelo no domingo. Pero ele tem gripe e as narinas repletas de vick vaporub. O frustrado, acreditem, sou eu. Canhoto, não, ele foi do desejo de me acompanhar à paciência de viver com o que é possível. E por isso, para não afrontá-lo com a minha grande saúde, enquanto não chegue também a minha hora de não mais beber, nunca mais, em qualquer domingo, bebo menos, somente três doses, em respeito a seu estado. E assim melhor posso ver e observar a sua pessoa.




Aos primeiros acordes do choro Canto dos Quilombos ele sorri. Melhor dizendo, sorri, não, ele põe um sorriso que não volta a se fechar nos lábios. Então entra o cavaquinho, então vem o bandolim, então acompanham violões. Para quê? Como é que se pode ser infeliz a ouvir uma composição dessas? Não sei se descobri a pólvora, mas Canhoto é feliz porque é um homem musical. Ele retira do som o remédio para a desgraça. Porque a sorrir ele se põe a balançar a cabeça também, a dizer e a se repetir “sim” em silêncio. Então eu sei e sinto que ele está liberto. Ele não está mais naquela cadeira, ou melhor, estando sentado nela, a cadeira é um objeto de profundo conforto. É como estar na dor e integrar a dor em algo maior, em outro lugar, onde a própria dor não tem razão, como expressou Paulinho da Viola. Então ele comenta, baixinho, à sua maneira, mas com um ar no rosto que não admite outra frase:




- Como tem gente boa no Brasil.




É fato. Agora é a minha vez de ficar balançando a cabeça. Vêm outros choros, até chegar na composição Catira. E ele, esquecido do nome do artista que ouve:




- É João Pernambuco?




Não, Canhoto, é Carlos Henrique Machado, eu lhe respondo.




Sei e sinto que ele não me vê, não mais pela ausência de visão, mas porque a ausência de luz é para ele um elemento para sua viagem. E ele está mais do que certo, isso não é uma ilusão, um escapismo, como qualquer idiota de manual poderia escrever. Isso é típico da arte, qualquer arte. Fazer do circunstancial um elemento de composição, sempre. Na dor, na alegria, na felicidade, no sofrimento, no riso, na raiva - tudo é matéria para a expressão. Isso não é ser cruel, isso não é ser perverso. É do gênero, é da natureza.




Mas essas bobagens que eu acabo de escrever, no calor do que me vem, do que percebo agora, ele sabe, sem conceito cerebral, seco, estéril, ele sabe porque sente, a balançar a cabeça e a sorrir. Impossibilitado que está de ele mesmo executar a beleza, com as suas gordas e canhotas e generosas mãos – porque esse homem é todo esquerdo, agora sinto, o que nele é destro é apenas auxílio para o outro lado -, ele passa compor de outra maneira, enquanto acompanha os movimentos do choro. Então eu percebo que Canhoto está tocando! Acreditem, porque eu vi Canhoto a executar o violão, apesar do AVC, apesar do estado em que se encontra, ele continua a tocar. Como? – Ele estava com uma das pernas cruzada, posta sobre o joelho. Com a mão esquerda, imóvel, repousada em um braço da cadeira, com a direita ele marcava posições de acompanhamento na tíbia, no tornozelo!!! Essas coisas a gente vê e deve olhar para o outro lado em sinal de respeito. Mas é insopitável, é irreprimível. Ver as notas a correr com o polegar, com o médio, o indicador, em marcações imaginárias em uma tíbia que se transformou em braço de violão. Eu bebo e me calo. Baixo a cabeça.




E silencio ali, como silencio aqui. O mais que escrever será inútil.